Preciso do mar. Preciso mesmo. Preciso
dele como fulanos com caras suadas e cor de papel precisam de cenas
acabadas em “ina”. Dependo dele. A única razão porque mantenho
alguma dignidade e pose para vir aqui é ainda não terem arranjado
um prefixo para a dependência. Depender de alguma coisa é
intratavelmente mais elevado do que ser um
“qualquer-coisa”dependente. É o que me permite chamar a esta
merda terapia em vez de dose. Intimamente, contudo, sei ser
toxico-dependente. Não me parece fazer diferença que o produto seja
biológico.
Ainda assim, talvez esteja a me vender
por baixo. Não sou um nadador, marinheiro, pescador, ou qualquer
outro yoplait que se satisfaça com um monopólio particular. Fique
claro - para uma ressaca como a minha, preciso do mar inteiro.
O pacote completo. O grande reflector,
o grande destruidor, o grande redentor. Talvez apenas isso: o grande.
O único verdadeiramente Grande. A espuma paciente e corrosiva, o
labor preguiçoso e marginal. O mar que enferruja, desenverniza,
dobra e parte. A sopa primordial. O fim do mundo. O meio, o glorioso
e progressivo meio.
Os acessórios. O ar perfumado,
adstringente, côncavo e autónomo, inevitavelmente disparado aos
miolos. As aves de presa, a sua canção ridícula e premonitória.
Preciso dele para além do visível. A
penumbra, a penumbra é tão importante como a superfície, onde o o
marejar preguiçoso e o colapso inconsequente de pequenos anéis de
água vão dando às pedras com que rir.
Oh, a superfície, o quão oferecida e
traiçoeira é a superfície. Olhem para ela hoje. Descansa como
pele, enrugando-se refastelada na costa, como por obrigação
contratual. No céu, moedas de cêntimo interregnam inutilmente os
testes de Rorschach das
nuvens conspiradoras de Outono.
A penumbra não. A penumbra é evidente
e singela. A frequência lenta da radiação, a pressão cambriana e
implacável. É sintomático que os homens tenham ido para a frente
antes de irem para o fundo. Não que precise de ir lá. Preciso de
saber que lá está.
No mar, tudo isto faz sentido – e é
difícil. No mar, toda a energia se encaixa. É a lei dos grandes
números. Se fores grande o suficiente, tudo te é indiferente.
Ninguém te toca. Mas o mar é maior, anterior à lei. Ninguém toca
no mar, nem a lei dos grandes números. No mar, tudo converge. Tudo
isto se dirige para um infinito plausível, palpável, equilibrado.
As peças encaixam-se lá ao fundo, no horizonte. Se não houver
interferência de forças menores, há sempre beleza no horizonte.
Lá à frente, onde estão os monstros
e do abismo, parece estar tudo sempre porreirinho.
Tenho saudades da ilha, quando era
agarrado ao mar e não sabia. Quando não precisava de vir aqui para
retomar os padrões de discurso e pensamento – para voltar a falar
e a pensar – como uma pessoa normal.