sábado, 10 de novembro de 2012

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Preciso do mar. Preciso mesmo. Preciso dele como fulanos com caras suadas e cor de papel precisam de cenas acabadas em “ina”. Dependo dele. A única razão porque mantenho alguma dignidade e pose para vir aqui é ainda não terem arranjado um prefixo para a dependência. Depender de alguma coisa é intratavelmente mais elevado do que ser um “qualquer-coisa”dependente. É o que me permite chamar a esta merda terapia em vez de dose. Intimamente, contudo, sei ser toxico-dependente. Não me parece fazer diferença que o produto seja biológico.

Ainda assim, talvez esteja a me vender por baixo. Não sou um nadador, marinheiro, pescador, ou qualquer outro yoplait que se satisfaça com um monopólio particular. Fique claro - para uma ressaca como a minha, preciso do mar inteiro.

O pacote completo. O grande reflector, o grande destruidor, o grande redentor. Talvez apenas isso: o grande. O único verdadeiramente Grande. A espuma paciente e corrosiva, o labor preguiçoso e marginal. O mar que enferruja, desenverniza, dobra e parte. A sopa primordial. O fim do mundo. O meio, o glorioso e progressivo meio.

Os acessórios. O ar perfumado, adstringente, côncavo e autónomo, inevitavelmente disparado aos miolos. As aves de presa, a sua canção ridícula e premonitória.

Preciso dele para além do visível. A penumbra, a penumbra é tão importante como a superfície, onde o o marejar preguiçoso e o colapso inconsequente de pequenos anéis de água vão dando às pedras com que rir.

Oh, a superfície, o quão oferecida e traiçoeira é a superfície. Olhem para ela hoje. Descansa como pele, enrugando-se refastelada na costa, como por obrigação contratual. No céu, moedas de cêntimo interregnam inutilmente os testes de Rorschach das nuvens conspiradoras de Outono.

A penumbra não. A penumbra é evidente e singela. A frequência lenta da radiação, a pressão cambriana e implacável. É sintomático que os homens tenham ido para a frente antes de irem para o fundo. Não que precise de ir lá. Preciso de saber que lá está.

No mar, tudo isto faz sentido – e é difícil. No mar, toda a energia se encaixa. É a lei dos grandes números. Se fores grande o suficiente, tudo te é indiferente. Ninguém te toca. Mas o mar é maior, anterior à lei. Ninguém toca no mar, nem a lei dos grandes números. No mar, tudo converge. Tudo isto se dirige para um infinito plausível, palpável, equilibrado. As peças encaixam-se lá ao fundo, no horizonte. Se não houver interferência de forças menores, há sempre beleza no horizonte.

Lá à frente, onde estão os monstros e do abismo, parece estar tudo sempre porreirinho.

Tenho saudades da ilha, quando era agarrado ao mar e não sabia. Quando não precisava de vir aqui para retomar os padrões de discurso e pensamento – para voltar a falar e a pensar – como uma pessoa normal.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Calma com esse Estado low-cost


AJ Seguro, a pôr o seu dinheiro no eleitorado delirante e delinquente que admite ponderar que o líder do PS não está a mentir em tudo o que toca o memorando, disse que não toleraria "um Estado low-cost".

A ideia será, presumo, que o barato sai caro. No entanto, tendo em conta o que pago para ir para a Madeira na TAP e o que pago para ir na Easyjet, um Estado low-cost é uma cena que, pelo menos à partida, me seduz.

Outra cena que me seduz é a ironia afiada de ver todos aqueles que se dedicam a comparar a Islândia com países a sério e a criticar "os políticos", "o sistema" e "os partidos",  a se queixarem do "fim do Estado Social".

O Estado Social é a Segurança Social, a Saúde, a Educação para todos, universais e, no caso dos dois últimos, tendencialmente gratuitos. Inclui também a percepção de que as despesas ditas "sociais" são um investimento, e não um custo - uma ideia que, perdoem-me os crentes, se provou errada, ou pelo menos um investimento com retorno adiado para quando estivermos todos mortos. Inclui diversos outros conceitos e directrizes que aborreceriam o leitor de morte antes de chegar ao fim do texto.

Mas também é, e muito, os políticos, o sistema, os partidos e o que quiserem enfiar lá dentro. É o PS que elegeu António José e espera o seu quid pro quo quando e se o poder lhe cair ao colo.

Quem quer um Estado competitivo (sim, competitivo, onde as pessoas compitam pelos lugares de administração e gestão e não haja tanto espaço para confiança política), barato, que permita descer a factura de impostos, ter menos assimetrias burocráticas, correspondente aproveitamento, e um foco útil na eficiência e eficácia do essencial (onde se inclui a Saúde e Educação) tem mesmo de escolher a sua dama.

Quem escolher o Estado Social, muito bem - é só produzir que nem uns malaios, pagar uma alarvidade de impostos, ou então aguardar que os filhos ou netos passem pelo mesmo estrume por que passamos agora.

É que o barato sair caro é uma hipótese, mas o caro sair caro é uma certeza.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Suponho que...


algures exista um génio, um tipo indiscutivelmente bom ao ponto de atravessar fronteiras de classe, pensamento, género, e nacionalidade que não devia atravessar, e eu só o vá conhecer depois de ele morrer.



terça-feira, 30 de outubro de 2012

Salazarices

O que é? A sério, o que é?

É diferente de ser nazi, de ser comunista, estalinista, maoísta, boer, ou mesmo "neo-liberal"?

Literalmente, é claro que sim. Na prática, é idêntico. Salazarento é um saquinho, um conceito umbrella onde cabe toda a maldade e vícios identificáveis na língua de costa conhecida como Portugal.

É uma pobreza de linguagem e uma imprecisão. Nada é antiquado, nada é desadequado, nada é filisteu, nada é aristocrático, nada é anti-capitalista, anti-comunista, anti-socialista, anti-humanista. Nada é corporativo, nada é censurador, nada é repressivo, nada é nacionalista, nada é maniqueísta, nada é dominador, nada é insensível, nada é plutocrata, nada é elitista, nada é somítico, nada é pobre de espírito. É tudo salazarento.

Porque o que importa é estar na Assembleia República como se se estivesse à mesa na casa dos avós, a ouvir histórias com personagens de sobrenome Bom e Mau em que os Maus sejam salazarentos.

Quando salazarento, muito salazarento, é estar em plena intervenção externa a apontar para a lua e a falar do dedo: a discutir se a revolução foi em 1976 ou 1974, se o Ministro das Finanças já alguma vez se sentiu assoberbado por sentimento revolucionário, ou se Salazar ainda arranha os tímpanos da alma lusitana com aquele guincho de bicha no armário.

Se ao menos esses rapazes anti-salazarentos tivessem chegado ao poder e aplicado a sua doutrina não-salazarenta, imagine-se onde não teríamos chegado. Podíamos ser felizes. Podíamos ser bons. Podíamos ser ricos. Tudo o que não envolva pegar nos pedaços da réstia de País que temos e deixar de falar no merdas do Salazar.


Força do hábito

Furacão em Nova Iorque: "RÁPIDO, mete nas notícias. Vai à net, vê se saíu mais algum vídeo! Fosga-se olha tubarões na cidade!"

Furacão no Sudeste Asiático: "Vê se já começou Modern Family."

Declaração de interesses

Nada me deprime como o sucesso dos medíocres. Por mais que tente, não me consigo demorar num português contemporâneo. Há diferenças capitais, de substância, entre a minha ideia de ficção e o que considero ser o fetiche nacional.

Prefiro saber deixar de fora à exaustividade.

Contenção sobre exibicionismo.

A repetição da palavra justa sobre a "variação (supostamente) elegante".

Clareza sobre obscuridade.

A navalha de Ockham - ou como aqui seria mais coerente dizer, simplicidade sobre complexidade.

O eufemismo e a ironia sobre a perífrase.

A energia de discurso sobre o vocabulário - ou como ninguém sente uma palavra que tem de ir ver ao dicionário.

A elegância sobre tudo.

O Martin Amis dizia num elogio a V.S. Pritchett que o homem era mais um espelho do que um farol. A escrita, a humanidade, brilhava através dele, não provinha dele. Era um erudito com a virtude superior de um básico - a não distorção.

O triunfo do espelho sobre o farol é a percepção de uma humildade antiga - de que a maior pretensão da arte é imitar a vida em toda a sua variedade e complexidade, representando isso mesmo uma perfeição, etérea e inatingível como tal.

Porque na crítica as coisas fazem sempre o círculo, talvez a minha aversão a esta luz própria resulte da minha própria sensibilidade à realidade. Tenho a impressão de que a coerência da ficção é inversamente proporcional ao quão além da vida tenta ir. Quanto mais além se tenta ir, quanto mais instruído, enfeitado e carregado fica o texto, mais aquém da vida é.

Pretensioso. Uma luz colorida, fátua e barulhenta, em clara compensação pela falta de virtuosismo, de calma, com que resolveu abordar a coisa. Por outro lado, os livros que são como são, que valem como história tal como alegoria, os livros verosímeis, as personagens que falam como nós, merecem-me uma ternura e apreciação verdadeiramente superior.

Lembro-me muito de Darwin. O seu mérito, o seu génio, não foi tanto (e foi) uma proeza intelectual, mas a humildade de não excluir a hipótese de ele próprio descender de macacos. O génio, tantas e tão significativas vezes, é saber sair do caminho das suas próprias ideias.

A ficção nacional tem muito "eu". Não que não haja quem se deixe atropelar, quem seja assoberbado e superado pelo seu próprio génio. Mas não são apenas uma minoria. São desencorajados.

P.S. Dizem que todo o crítico é secretamente um prosélito de si próprio. Este post pode muito bem dizer alguma coisa sobre mim. É fatal que um dia terei de engolir estas palavras. Mas não será pela minha mão.






segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Anatomia da racionalização

Era boa. Demasiado boa para ele. Demasiado boa em geral. Ela tinha uma forma de projecção, de refracção da imagem. O seu movimento antecipava-se, chegava antes dela - como um trauma, um choque, uma maldição.

Ela aproximava-se. Antes dela, o espectro, seja o que for que vinha antes. Ele sobreviveu. E aí sentiu-a, velada, um zéfiro através de uma cortina de seda.

Debaixo do gloss, do lápis, da sombra, de outros artifícios exóticos, místicos e sucessivos com o redundante propósito de salientar o mistério da vida feminina, ela carregava o fardo de uma agressão, de um medo, de uma ameaça.

Assimetria. As maçãs do rosto, a amplitude da cavidade. Um dos olhos vira alguma coisa que o outro só sentiu. Algo pesado, obtuso, cego.

Vigilância. Tipos grandes, endurecidos e variados. Ela pressente-os, sabe, quer saber deles. Ele sente-lhe a inquietude das órbitas, a impressão mútua dos molares, os lóbulos retroactivos.

Sabia que não era ele. Sabia que aquela projecção era mecânica, desportiva, utilitária. Sabia que ia perder alguma coisa. A carteira, o telemóvel, os botões de punho que a tia-avó rica lhe dera no Natal. Talvez algo mais sério. "O sobretudo, talvez o sobretudo", pensou.

O rim.

A sua cabeça contorcia-se, centrífuga, enquanto a ferida submergia no encarnado ácido e regurgitante da água gelada. Não ia morrer. Tinha suturas. Rústicas, rupestres, paleolíticas, mas suturas. Na ponta do arranjo, tacteou um objecto redondo e compacto. O botão sobresselente do sobretudo, que de sobremaneira anunciava o triunfo da tragédia, o ponto de cruz. Não se lamentou. Era Medicina. Se o impedia de morrer, era Medicina.

Pôs a mão de fora da banheira. Quando o sangue lhe voltou à ponta dos dedos, sentiu. A seda. Tangível, próxima, palpável. Tacteou os seus dedos ásperos nela, e acolheu o contraste como se fora uma criança. Sorriu.

Ainda tinha um rim.